Naquele dia...


Houve um dia em que muita dor se sentiu.
Houve um dia em que um homem foi libertado e outro condenado.
Houve um dia em que o céu se fechou e a terra tremeu.
Houve um dia em que três mães choraram.
Houve um dia em que muitos homens se prepararam.
Houve um dia em que um povo pediu pela crucificação.
Houve um dia em que um homem fez história e todas as vidas foram tocadas.

***
Ao participar da encenação da Paixão de Cristo de Piracicaba em 2013, enquanto fazia cenas no meio do povo, comecei a me perguntar qual seria a história da minha personagem.
Não queria que ela estivesse ali à toa. Não queria que ela pedisse a condenação de Jesus a troco de nada. Queria que ela tivesse um passado, que seus atos fossem justificados.
E a história daquela personagem foi surgindo, me inspirando não apenas para a minha atuação, mas também para a criação dos outros personagens que passeiam por esses contos.
Os personagens e fatos aqui narrados não têm base histórica, são ficcionais.
Todos os personagens, de alguma forma, são afetados por Jesus e pelo que aconteceu a ele NAQUELE DIA.
                                                                                                                               Carla Furlan

***

Sara

Lembro como se fosse hoje o dia em que o vi pela primeira vez. Estava viúva há pouco tempo e, por este motivo, quase não saía de casa.
Casei muito jovem, com um homem muitos anos mais velho. O casamento arranjado por meus pais nunca me fez feliz. Tinha que aturar aquele homem todos os dias, com seu cheiro forte e sua cara nojenta.
Por uma benção dos céus não tive filhos e seis anos após este casamento forçado, meu marido adoeceu e, poucos meses depois, faleceu. Foi pra mim um alívio, mas por conta dos costumes de meu povo pouco podia sair de casa. Tive que guardar luto, fingir que sentia muito.

Numa manhã qualquer, em que já não aguentava mais ficar trancada em casa, saí para caminhar. Como mandavam as leis, cobri meus cabelos e parte do meu rosto.
O vento soprava leve pelas ruas do mercado. Muita gente andava por ali. A cidade parecia alvoroçada, inquieta. Ao parar numa banca de frutas secas, um grupo de rapazes que falava alto chamou minha atenção. Um deles parecia ser o líder, gesticulava muito e ao passar apressado por mim esbarrou em minha cesta derrubando parte das frutas que eu havia comprado. Olhou pra trás, apanhou e me devolveu as frutas e foi embora.
O vendedor, possivelmente notando algo diferente em meu olhar me alertou, dizendo que aqueles rapazes eram chamados de zelotes, e que o homem que tocou em minhas mãos ao me entregar as frutas era, como eu imaginara, o líder deles, chamado Barrabás. Disse que eram salteadores, homicidas, homens perigosos.
Meu corpo estremeceu, mas até a hora de dormir não tinha deixado de pensar nas mãos que tocaram as minhas. Algo nele era diferente. Algo havia mexido comigo.

No dia seguinte resolvi sair de casa novamente. Minha família estava longe e, apesar das tradições, aos 21 anos não queria mais sentir que minha vida tinha acabado. Notava os olhares de reprovação dirigidos a mim, mas tudo o que eu queria era vê-lo novamente.
Mais de um mês se passou sem que eu visse aquele grupo de rapazes.
Nem pensava mais no episódio do mercado quando, numa manhã qualquer, resolvi buscar água num poço próximo à minha casa. Qual não foi minha surpresa quando vi, sentado à beira do poço, Barrabás e dois outros zelotes.
Não sabia se recuava ou seguia em frente. De cabeça baixa – e o coração acelerado – me aproximei do poço. A conversa dos rapazes foi interrompida com a minha chegada. Enquanto retirava a água sentia seus olhares fixos em mim – e tenho certeza que corei.
Com o nervosismo da situação, sem prestar atenção ao que fazia, enchi meu cântaro até a borda, o que me fez carregá-lo com bastante dificuldade. Logo ouvi passos se aproximando e uma mão apoiou meu cântaro. Me virei e lá estava ele, Barrabás, que com um discreto sorriso no rosto e sem olhar em meus olhos, me oferecia ajuda. Quando pensei em recusar e agradecer, o cântaro já não estava em minhas mãos e passamos a caminhar lado a lado. Percorremos todo o trajeto em silêncio e quando chegamos à minha casa o agradeci e ele se foi.
Nenhuma palavra!
Passei o resto do dia perdida em pensamentos. Me martirizando pelas tantas coisas que podia ter dito e não disse.

No dia seguinte só saí de casa no meio da tarde e lá estava ele, sentado ao lado de minha porta. Ao me ver seus olhos pareciam pedir para que o acompanhasse. Mas apenas saiu... Caminhando lentamente.
Sem conseguir controlar meus pensamentos e, principalmente meus passos, passei a segui-lo.
Caminhamos até o poço onde nos encontramos na manhã anterior. Naquele horário poucas pessoas passavam por aquele local. Ele se sentou e fiz o mesmo.
Algum tempo depois ele começou a falar: “Sara... Viúva há pouco mais de dez meses. Filha de pai também viúvo, velho e doente. A mais nova de cinco irmãos. Depois da morte de seu marido, revoltada com o casamento que lhe arranjaram, rompeu com sua família, decidida a não voltar para a sua cidade. E mesmo contra todas as tradições e imposições desta sociedade, não voltou! Você é mesmo uma guerreira... Uma bela guerreira”.
A esta altura eu estava corada e assustada. Não imaginava como ele podia saber tanto sobre mim sem nunca ter me dito nenhuma palavra – apenas eu tinha dito duas vezes “obrigada”. Só então me dei conta de que era a primeira vez que ouvia a sua voz.
Notando meu medo ele me explicou que no dia anterior eu havia chamado sua atenção enquanto apanhava água. E que ao notar que podia me ajudar com o cântaro, imediatamente abandonou seus dois companheiros. Mas disse também que, ao começar a caminhar ao meu lado se deu conta de que não podia se aproximar tanto de alguém de quem não sabia nada. Não sabia se eu era casada, se tinha filhos, e não queria arrumar mais problemas do que já tinha por sua própria conta. Disse ainda que, como não parara de pensar em mim, naquela tarde saiu andando por ali... Conversando com um... Perguntando pra outro... Até conseguir todas as informações que queria. E que então ficara ali, esperando que eu saísse de casa.
Pelo jeito ele não se lembrava do episódio no mercado, e resolvi não tocar no assunto.
Para não deixar que ele percebesse que eu já o conhecia, perguntei seu nome. Mas essa foi a única coisa que ele disse sobre si mesmo naquela tarde.

O tempo foi passando e por vários dias caminhamos lado a lado e conversamos sobre banalidades. Sentia os olhares de repressão que me perseguiam a cada saída de casa, mas já não me importava.
Por vezes ele passava dias sem aparecer, mas quando o encontrava nunca tinha coragem de lhe perguntar por onde tinha andado. Numa dessas vezes, quando já não aguentava mais esperá-lo na janela, um de seus amigos zelotes apareceu e veio me dizer que ele queria me encontrar, mas estava escondido. Sem pensar nas consequências o segui até a casa de Barrabás.
Nunca tinha sentido o que senti naquela manhã. Fui até lá imaginando o que poderia acontecer, mas a realidade superou a imaginação. No caminho minhas mãos tremiam e me perguntava sem parar se devia mesmo ir até aquela casa. Não tinha explicação, apenas obedecia aos impulsos de meu corpo.
Ao encontrá-lo, quando começamos a conversar me dei conta de que ele tinha as mesmas dúvidas e desejos. Tínhamos dois corações que batiam descontrolados. Duas mentes que tentavam descobrir o que dizer, mesmo sabendo que naquele momento o que menos importavam eram as palavras.
Ele me disse que teria que ficar longe por um tempo. Que a cidade estava agitada e que ele e seus amigos tinham que agir.
Aos poucos nossos corpos, antes tão distantes, foram se aproximando. Nossos olhares, que antes se evitavam, agora não conseguiam apontar em outra direção. Ainda assim, faltava coragem de ir adiante e fazer o que tanto queríamos.
Barrabás se levantou, fechou as janelas e a porta. A sala ficou escura. Agora não tínhamos medo de olhar para o outro. Sentamos frente a frente. Ao sentir a pele dele tocar a minha e a respiração tão próxima, um arrepio percorreu meu corpo, e soube que a partir dali não poderíamos mais evitar o inevitável.
O beijo aconteceu calmo, delicado, carinhoso. O toque de suas mãos era ao mesmo tempo suave e forte, quente. E então, foi como se o tempo parasse. Nunca fui amada daquele jeito, nunca tinha sentido tanto desejo.
Mesmo contrariando as tradições de meu povo, pela primeira vez me sentia de acordo com meus sentimentos. Finalmente eu me transformara numa mulher. Após uma longa tarde de suor e desejo intenso, adormeci sorrindo.
Quando acordei já era noite e um lençol cobria suavemente meu corpo. Barrabás não estava mais lá. Mas ele havia me prometido que voltaria. Esperei a madrugada chegar e caminhei de volta pra casa. Naquele horário não haveria tantos olhares – e eu não conseguia tirar o sorriso de meus lábios.

Alguns meses se passaram sem que eu recebesse qualquer notícia.
Num dia qualquer, a cidade encontrava-se especialmente agitada e, no meio de um grande tumulto, ouvi alguém dizer que um homem que se dizia filho de Deus tinha sido preso. Corri até a praça do palácio, onde uma multidão se inflamava.
O homem, dito santo, estava num estado deplorável e senti pena dele. Não gostava de ver aquele tipo de cena.
Em meio à multidão alguns choravam, outros rezavam, alguns gargalhavam e a grande maioria gritava ofensas ao prisioneiro.
Mesmo sem conhecer aquele homem, sem nunca ter ouvido falar de seus milagres, senti meus olhos encherem de lágrimas e um vazio me preencher o peito.
O governador Pôncio Pilatos relatava o caso do homem chamado Jesus. Parecia tentar convencer o povo de que ele já tinha sido castigado e o mais justo agora seria libertá-lo. Mas a multidão já pedia sua crucificação.
Minha vontade era gritar contra aquele povo. Fazer com que se calassem. Por que matar um homem somente por ele acreditar ser filho de Deus? Se fosse mesmo verdade ele não poderia ser condenado. Se fosse mentira, talvez aquele fosse apenas mais um louco que já tinha apanhado o suficiente.
Resolvi ficar calada, pois eu já era olhada com reprovação: uma viúva como eu não devia andar sozinha pelas ruas como eu vinha fazendo. Fechei os olhos e rezei por aquele homem. E então, ouvi o que nunca esperava ouvir. Em meio aos gritos da multidão, Pilatos pediu que trouxessem o outro prisioneiro... Barrabás.
Meu coração disparou e me senti atordoada. Não tive coragem de abrir os olhos e comecei então a rezar para que o prisioneiro não fosse o mesmo homem a quem eu tinha entregado meu corpo.
Pela reação das pessoas o prisioneiro já tinha sido apresentado e só então consegui abrir meus olhos. O homem parecia cansado... Sujo e com a barba por fazer, mas os olhos não enganavam: era o homem que esbarrara comigo no mercado, que carregara meu cântaro, que dividira comigo sua cama...
Pilatos disse ao povo que, por ocasião da Páscoa, poderia libertar um prisioneiro e perguntou à multidão quem eles queriam ver solto? Jesus de Nazaré ou o perigoso salteador Barrabás.
Sem pensar nas consequências e sem controlar meus atos, gritei pela liberdade de Barrabás. Gritei com mais força. E com os olhos banhados de lágrimas me senti misturada à multidão.
Barrabás foi solto e correu para longe acompanhado pelos outros zelotes. Ainda sem controlar meu corpo, saí correndo atrás deles. Ao longe ouvia a multidão pedindo o sangue e a crucificação de Jesus.
Senti um aperto no peito por aquele homem, mas me sentia ainda mais aliviada pela libertação daquele que eu acreditava ser o “meu homem”.
Os segui até a casa de Barrabás. Seus olhos foram de surpresa ao me ver.
Ele pediu aos outros zelotes que se retirassem. Fechou a porta. Meu coração estava acelerado, ansiava por mais uma vez estar em seus braços. Corri até ele e o abracei. Mas ele não se mexeu, não retribuiu meu abraço. Olhei em seus olhos... Seu rosto estava sério, frio.
Ele se afastou de mim e começou a arrumar algumas coisas. Disse que estava partindo. Que ia fazer uma longa viagem com seus companheiros e não tinha previsão de volta.
Sem saber o que fazer, pedi a ele que me levasse junto. Ele simplesmente caminhou até a porta e pediu pra que eu fosse embora. Tentei relutar, brigar, mas seus olhos eram duros e suas palavras também. Ele me colocou pra fora e bateu a porta em minhas costas.
Alguns dos zelotes que estavam por ali disfarçaram, outros esboçavam um sorriso malicioso.
Saí caminhando sem olhar pra trás, e por mais que não quisesse acreditar, sabia que não tornaria a vê-lo.

Nos dias que se seguiram ouvi histórias sobre o fim de Jesus de Nazaré. Nada mais podia ser feito, mas de alguma forma eu sentia que parte do sangue daquele homem santo repousava em minhas mãos.


FIM


***


  
Pai


Olhava aquele garotinho ali adormecido, que completara cinco anos na semana anterior e sabia que ele tinha mudado sua vida. Gostava do garoto, é claro, mas nunca conseguia demonstrar a ele tudo o que de fato sentia. Não entendia o porquê de tanta admiração por parte do filho
Mas naquela manhã, sentia-se mais incomodado, sem saber o porquê. Esperava um dia difícil pela frente, mas afinal, todos os dias de condenação eram difíceis para os soldados romanos.

Tiago, ainda tão pequenino, se assustou ao acordar e ver alguém tão próximo de sua cama. Normalmente quando acordava aquele homem já tinha ido trabalhar – talvez ainda não fosse hora de sair da cama.
Seu pai tinha a cabeça baixa, parecia pensativo. O menino ficou olhando curioso para aquela cena. O que estaria passando pela cabeça dele?
Antes que seu pai erguesse a cabeça e o visse acordado, Tiago fingiu estar dormindo. Ouviu passos se aproximando da cama e sentiu o afago em seus cabelos. Quando percebeu que estava sozinho no quarto, levantou sem fazer barulho e ficou espiando pela porta entreaberta.
Viu seus pais se abraçarem – como sempre os via fazer – mas daquela vez o pai parecia mais calado que nos outros dias.
Voltou para sua cama e em pouco tempo pegou no sono novamente.
Quando acordou, o sol já aquecia seu quarto. No meio da tarde alguns de seus amigos se encontraram com ele em frente à sua casa e foram fazer sua brincadeira favorita: fingir ser o exército romano. Tiago era o líder dos soldados. O condenado era uma boneca de pano da irmã de um deles. Havia ainda um dos garotos que fingia ser o governador Pôncio Pilatos. O condenado era um ladrão. O governador dava as ordens e todos aqueles soldados – que tinham entre cinco e sete anos – o castigavam de diversas formas.
Trocava-se o garoto que interpretava Pilatos – o papel menos desejado entre as crianças – trocava-se o crime do acusado e a brincadeira recomeçava.
Ao chegar em casa Tiago estava cansado. Tinha os joelhos esfolados e a roupa suja de lama. A mãe o recebeu alegremente e após o banho lhe preparou o jantar. Quando comia sua última colherada, Tiago ouviu a porta abrir.
Seu pai estava abatido, exausto. Tinha as mãos machucadas e a roupa suja de sangue. O olhar frio de todos os dias hoje dera lugar a olhos inchados e vermelhos.
Os pais colocaram Tiago na cama, mas é claro que o sono demoraria a chegar. Sua brincadeira de soldado tinha sido tão divertida... Como teria sido o dia de seu pai?
Ao ouvir a voz do pai e perceber que ele havia sentado para jantar, mais uma vez se levantou em silêncio e encostou-se à porta, que desta vez estava fechada.
Seus pais falavam baixo, mas conseguiu ouvir parte da conversa e, no dia seguinte, contou aos seus amigos: “Papai disse que ontem o Pilatos tentou salvar um prisioneiro, mas muita gente pedia sua condenação. No fim, parece que soltaram um ladrão e condenaram esse homem. O papai disse que esse homem morreu na cruz. (Será que dói morrer na cruz?) Ele disse também que primeiro deu muita risada daquele preso que dizia ser filho de um homem chamado Deus. Mas aí, depois que bateram muito nele o colocaram na tal cruz. Papai falou que quando ele morreu o céu ficou escuro e ele jura que sentiu o chão tremer”.
Um amigo perguntou a Tiago se o homem eram bom ou mal. Tiago não soube responder, mas disse que achava que era mal: “Se não fosse, por que iam matá-lo? Mas não ouvi o resto da história. Porque nessa parte ouvi os passos do meu pai e voltei correndo pra minha cama”. 

Entrou no quarto do filho. Tudo o que queria depois de um dia daqueles era lhe dar um abraço, carregá-lo no colo, mas ele já estava dormindo – devia ter brincado bastante. Deu um beijo em sua testa e sentiu os olhos se encherem de lágrimas, mas estava aliviado – ao menos seu filho estava ali: são e salvo. Porém, mesmo depois do banho, sentia o sangue daquele homem penetrando em sua pele – jamais esqueceria o último olhar que lhe dera do alto da cruz – e tinha certeza apenas de uma coisa: a partir daquele dia, nunca mais seria o mesmo.

FIM

***

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