Fragmentos de uma outra história
Pela
porta entreaberta o observava caminhar para longe.
A mochila nas costas. A cabeça
baixa.
Caminhava lentamente (não sabia
quando retornaria. Não sabia se retornaria).
Via seu amor - o maior de sua vida -
se afastar. Rezava para que um dia voltassem a se ver, mas seu coração batia de
forma diferente e isto lhe dava medo. Muito medo.
Então...
Este seria o fim?
***
Acordou sem saber direito o que havia acontecido no dia
anterior.
Tudo parecia tão distante.
Ao se olhar no espelho, os olhos inchados fizeram com que
se lembrasse.
Assim como tinha ameaçado
tantas vezes, agora, ele tinha mesmo ido embora.
Nos tempos da
adolescência, parece que estas dores passavam rápido - logo outro rosto bonito
ou uma voz carinhosa faziam com que se encantasse novamente e começasse um novo
“amor”.
Mas agora já não era mais
uma garotinha. Pelo contrário, muito tempo já tinha passado desde então.
Passara 27 anos ao lado
daquele homem.
***
Raquel
e Jorge se conheceram nos tempos de faculdade. Ele estudava jornalismo. Ela,
Pedagogia. No início se detestavam. Ele vivia provocando e ela, tentando se
manter afastada. Mas como tinham muitos amigos em comum, de um jeito ou de
outro estavam sempre juntos.
No
dia da formatura dela, ele estava presente. Bebeu um pouco demais e pegou no
sono sentado em uma das mesas.
Raquel
era uma das únicas pessoas sóbrias entre seus amigos, e por isso foi a
responsável por levar todo mundo pra casa.
Jorge
foi o último a ser deixado - era quem morava mais próximo de sua casa.
Ao
chegarem, Raquel teve que acompanhá-lo até a entrada.
Apoiado
nos ombros de Raquel, ao chegarem na porta, deu nela um abraço apertado...
Aproximou-se lentamente de seu rosto, lhe deu um leve beijo nos lábios e
entrou.
Raquel,
sem saber o que fazer ou pensar, ficou ali parada por alguns minutos. Atônita.
Confusa.
Porém
no dia seguinte, a confusão já tinha passado e se transformado em raiva.
Ao
atender aquele telefonema e ouvir tantos insultos, sem nem ter acordado
direito, foi fácil para Jorge responder à pergunta de “por que tinha feito
aquilo”. Simples. Estava bêbado.
***
Hoje, ao recordar o
passado, olhando a cama vazia onde até ontem um corpo repousava ao seu lado,
não pôde deixar de esboçar um sorriso.
Ainda assim, uma lágrima
correu em seu rosto.
***
Depois
da formatura - e do tal telefonema - Raquel e Jorge passaram muito tempo sem se
ver, até que um dia se encontraram no casamento de um daqueles amigos em comum,
e por uma dessas brincadeiras do destino - destas que nunca compreenderemos -
já não se olharam com tanto estranhamento.
Três
anos depois... Eram eles que se casavam.
***
Seu corpo parecia pesado,
cansado.
As ameaças de tantos anos
se concretizaram.
Nunca acreditara, de fato,
que ele iria embora. Sempre pensou que o marido só dizia isso para fazê-la se
sentir culpada.
Olhou-se novamente no
espelho. Tinha envelhecido um bocado. Seu rosto estava tão marcado. Sinais de
tantas histórias, tantos amores e dores. Anos de sala de aula.
Ligou para seu trabalho e
avisou que não iria trabalhar.
Lavou o rosto. Trocou de
roupa. Ligou o carro. Saiu sem destino.
Dirigiu até chegar à igreja
onde tinham se casado.
***
Os
olhos de Raquel brilhavam quando entregou a caixinha nas mãos do marido. Jorge
ficou sem reação. Não sabia o que dizer ao abrir a caixinha e ver, ali dentro,
um pequenino par de sapatos e um exame: “positivo”.
Os
meses passaram e não tinha como não notar a alegria intensa que estavam
vivendo. Transbordava pelos olhos, pela pele.
***
Parou o carro. Entrou na
igreja.
Sentia-se um pouco
envergonhada diante do homem na cruz. Há tanto tempo não o visitava.
Mas agora, sentia a
necessidade de olhar pra ele, - embora não gostasse de ver aquela cena -
precisava conversar com alguém, e não havia ninguém melhor para ouvi-la.
***
Mais
uma vez os olhos de Raquel se enchiam de lágrimas.
Após
nove meses de espera e preparação, saía do hospital de braços vazios. Não fosse
Jorge ao seu lado, talvez mal conseguisse caminhar.
***
Começou uma pequena
oração. Agradeceu pelas coisas boas que já vivera... Lembrou daqueles que já se
foram e, principalmente, daquele que mal chegou a nascer.
Mais uma vez pediu forças.
Força pra suportar aquilo que não podia ser mudado e seguir em frente.
***
Após
alguns meses de apoio mútuo, os desentendimentos começaram.
Ainda
existia muito amor, mas a dor que sentiam parecia ser maior.
Numa
noite, após uma discussão por um motivo qualquer, Jorge ameaçou sair de casa.
Nem chegou até a porta. Mudou de idéia e voltou.
***
Deixou a igreja com o
coração um pouco mais aliviado, porém, ainda se sentia vazia. Parecia que um
pedaço lhe faltava.
Foram muitos anos de união
e, apesar de todas as dificuldades, tinha certeza que o amor ainda existia.
***
Raquel
esperava ansiosa pela chegada de Jorge. Ele tinha viajado a trabalho e passado
o mês fora.
Embora
tivessem passado períodos muito difíceis, as coisas pareciam estar melhores.
Há
alguns meses, Jorge parecia mais bem humorado e até mais carinhoso. De início,
Raquel estranhou esta mudança tão brusca de comportamento. Mas não queria
estragar o bom clima que estavam vivendo e, por isso, resolveu deixar as
desconfianças de lado.
***
Chegou até o bairro onde
tinham vivido por muitos anos. Há pouco tempo quando a venderam, a casa foi
reformada e estava bem diferente. Ainda assim, era impossível estar ali e não
recordar tantas histórias vividas sob aquele teto.
***
Mais
uma vez, Jorge chegou tarde do trabalho e encontrou a mulher chorando. Ao
perguntar o que estava acontecendo não teve nenhuma resposta. Raquel apenas
pediu a ele que se deitasse ao seu lado e a abraçasse.
***
Os primeiros anos naquela
casa foram perfeitos, apesar de todas as dificuldades.
Já os últimos...
Estes foram repletos de mágoas e segredos, apesar da aparente felicidade.
Nunca descobrira nada
concreto. O máximo que encontrou foi um número de telefone no bolso de uma
calça do marido.
Nas primeiras vezes em que
ele se atrasou para voltar do trabalho, mil coisas lhe passavam pela cabeça.
Não conseguia evitar as lágrimas, mas quando o marido chegava e queria saber o
que estava acontecendo, nunca tinha coragem de falar ou perguntar nada.
***
Jorge
tornava-se cada vez mais ausente. Viagens e mais viagens a trabalho, atrasos
mal explicados.
Porém,
o que mais a incomodava era o fato de Jorge ser o homem mais carinhoso do mundo
quando estavam juntos. Sempre lhe trazia presentes e flores. Isso fazia com que
se sentisse culpada, sem saber se deveria ou não desconfiar dele.
***
Lembrou-se de um fim de
semana qualquer em que o marido estava viajando.
Cansada de ficar sozinha, resolveu sair.
Apesar de não ser tão
jovem, ainda era uma mulher bonita e percebia os olhares de admiração que
recebia.
Um destes olhares lhe
chamou a atenção e ela resolveu retribuir. Era o olhar de um rapaz mais jovem e
muito bonito.
O rapaz tomou coragem e se
aproximou. Passaram um bom tempo conversando. Saíram juntos e juntos passaram o
resto do dia.
Lembrava de só ter voltado
pra casa na manhã seguinte. Estava mais leve... Mais feliz.
Nunca contou pra ninguém o
que se passara naquele dia. Nunca mais viu aquele rapaz.
***
Raquel
decidiu aceitar o que a vida lhe oferecia. Não confiava no marido, mas era
impossível dizer que não o amava ou que ele não a fazia feliz.
Só
arrependia-se de não ter tentado ter outro filho. Teve medo de passar pelo
mesmo sofrimento que havia experimentado no passado.
Sabia
que não era mesma coisa, mas contentava-se com o cachorrinho que Jorge lhe deu
no último Natal. Este sim era seu companheiro de todas as horas.
***
Resolveu voltar pra casa.
Já tinha passado do horário do almoço e a fome estava começando a incomodar -
afinal, não comia nada desde o dia anterior.
Ao chegar em casa
surpreendeu-se com a porta entreaberta.
Tudo iria começar de novo?
Ele teria voltado novamente?
Sim, ele havia voltado.
Estava sentado na sala. A mala ao seu lado.
Mas neste curto espaço de
tempo desde a noite anterior, ela se deu conta de que vinha vivendo uma mentira
e se arrependeu de ter insistido por tanto tempo.
Amava aquele homem, isto
era um fato. E acreditava no amor que ele sentia por ela. Mas a verdade era que
para ele, este amor parecia não ser suficiente: ele sempre queria algo a mais.
O problema é que nunca recorria a ela para esse algo a mais.
Mesmo sem nunca ter
perguntado tinha certeza que ele tivera muitas outras mulheres.
Não queria mais isso para
sua vida. De um jeito ou de outro, tudo tinha que mudar.
Entrou sem olhar para ele,
mas sentiu o olhar do marido em sua direção. Caminhou até o rádio (como sempre
fazia) e o ligou. A locutora da estação anunciava uma velha canção de Bob
Dylan. Sentou-se ao lado do marido, pegou sua mão e disse tudo o que estava
sentindo naquele momento:
“- Não adianta mais ficar
ameaçando sem cumprir. Se realmente tem que ir ou quer ir embora, vá! Sem
medo. Não olhe para trás... Simplesmente siga em frente em sua decisão, sem
voltar no dia seguinte, como já fez tantas vezes. Talvez eu fique chorando.
Talvez meu mundo desabe. Talvez eu quebre a casa inteira. Talvez eu passe
noites em claro me perguntando o que fiz de errado. No início, ao encontrar
meus amigos, não terei outro assunto. Ficarei mal humorada, deprimida e é
possível até que tente melhorar com a ajuda de medicamentos. Mas aos poucos, tudo vai
começar a ficar distante. A dor vai diminuir e vou perceber que a perda não foi
tão grande assim. Você terá ido embora, mas só terei perdido um corpo e uma
presença que, no fim das contas, nunca me pertenciam. Não posso te aprisionar. Felizmente eu continuarei
aqui: inteira. Finalmente me darei conta que, ao contrário do que me parecia,
você não levou um pedaço de mim. Tudo o que parecia ter
perdido foi ilusão! Não me faltará nada para recomeçar. Não me faltará nada
para ser feliz novamente. Posso não ser mais tão
jovem, mas sou bonita, inteligente. Posso amar e ser amada outra vez. Bastará reconhecer que
esta má fase de minha vida já terá durado mais tempo do que deveria. Dependerá apenas da minha
vontade levantar da cama e abrir as janelas para deixar o sol entrar. Bastará
apenas criar coragem e abrir a porta da rua. Lá fora um mundo inteiro
estará me esperando, cheio de aventuras, desafios... Pra quê depender de
alguém, que não eu mesma, para ser feliz? Dependo apenas do meu
desejo de buscar algo novo e seguir adiante.”
Levantou-se calmamente e
deu um leve beijo na testa daquele homem (a quem dedicara tantos anos de sua
vida).
“- Estou cansada. Não
dormi bem esta noite e tive uma manhã de muitas lembranças. Vou me deitar um
pouco. Quando você sair, se for
mesmo sair, apague as luzes e tranque a porta. Ah! E, independente de
qualquer coisa, nunca duvide: eu te amei todos os dias, por todos estes anos.”
Desligou o rádio e
caminhou para o quarto.
***
Jorge
parou na porta do quarto e, olhando sua mulher dormir, por algum motivo que até
hoje não entende, sentiu um nó na garganta e lágrimas nos olhos. Sabia o quanto
a amava, apesar de todos os erros que cometera e de todas as vezes em que a
fizera sofrer. Sentou-se ao seu lado na cama, aproximou os lábios do ouvido da
mulher e sussurrou: “Estarei ao seu lado. Pra sempre”.
Raquel
sem acordar, apenas se acomodou nos braços de Jorge, que ficou ainda um bom tempo
acordado, apenas velando o sono daquela pessoa tão especial e se perguntando
como seria se a perdesse um dia.
Continuou a cantarolar a música que, há pouco, tocava no rádio.
Continuou a cantarolar a música que, há pouco, tocava no rádio.
Fim


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